A Lei 8/2017 de 3 de março, estabelece o estatuto jurídico dos animais, reconhecendo a sua natureza de seres vivos dotados de sensibilidade. Por outro lado, pelo disposto n.º 3 do decreto-lei n.º 314/2003, é permitida a presença de cães e gatos em apartamentos, desde que sejam respeitadas as boas condições de alojamento e a ausência de riscos hígio-sanitários procurando minimizar os riscos de poluição ambiental e de doenças transmissíveis. O número permitido é de até três cães ou quatro gatos adultos por apartamento, não podendo o total exceder quatro animais. Este número máximo pode ir até seis, desde que o médico veterinário do município e o delegado de saúde entendam que esse número não coloca em causa os requisitos de higiene e também do bem estar dos animais. No entanto, o regulamento que faça parte do título constitutivo da propriedade horizontal ou regulamento aprovado posteriormente por TODOS os condóminos, podem reduzir aquele número ou até proibir cães e gatos no edifício.
Por vezes torna-se difícil conciliar o direito de ter animais nos prédios urbanos, com o direito ao descanso e ao repouso dos restantes condóminos.
Vejamos uma das muitas situações que chegou ao tribunal e a decisão proferida neste caso em concreto, que extraímos, com a devida vénia de LEXPOINT.PT.
O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que o direito de uma moradora ao descanso e repouso prevalece sobre o direito dos vizinhos a terem um cão que ladra constantemente, dia e noite, sem motivo aparente, ao ser deixado longas horas no terraço, sem qualquer presença humana.
O CASO
Uma moradora de um prédio recorreu a tribunal pedindo para que fosse ordenada a retirada do cão do andar por cima do seu alegando que o mesmo permanecia a maior parte do tempo no terraço e que ladrava por horas seguidas, a qualquer hora do dia ou da noite, sem aparente motivo justificado, prejudicando o seu direito ao repouso e a sua saúde.
O dono do cão defendeu-se alegando ter realizado diligências junto de veterinários, socorrendo-se de equipamentos, tais como coleiras e açaimes, que colocara no seu cão a fim de o silenciar, mas sem sucesso, que tinha mantido uma atitude colaborante com os demais condóminos e que não lhe podia ser retirado o direito de ter consigo o seu cão, o qual, ademais, se tornava necessário para recuperação da doença de que padecia a sua mulher.
Não obstante, o tribunal condenou o dono do cão a proceder à retirada do mesmo num prazo de 45 dias, decisão da qual foi interposto recurso para o TRL.
APRECIAÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
O TRL, por acórdão de 6 de março de 2025, julgou totalmente improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida, ao decidir que o direito de uma moradora ao descanso e repouso prevalece sobre o direito dos vizinhos a terem um cão que ladra constantemente, dia e noite, sem motivo aparente, ao ser deixado longas horas no terraço, sem qualquer presença humana.
Desde 2017 que os animais deixaram de ser considerados meras coisas para passarem a ser considerados seres vivos irracionais, com sentimentos e merecedores de proteção. Assim, embora não sejam titulares de direitos por falta de personalidade jurídica, devem ser-lhes reconhecidos interesses juridicamente protegidos. Essa proteção jurídica de que gozam traduz-se desde logo no bem-estar que deve ser-lhes assegurado pelo respetivo proprietário.
Todavia, o Homem, enquanto ser humano também é titular de direitos, consagrados na lei fundamental, tais como os direitos de personalidade, nomeadamente o direito ao repouso, e o direito à propriedade privada, os quais são muitas vezes conflituantes entre si, impondo-se dirimir esse conflito. Não havendo possibilidade de harmonizar os direitos em conflito, a solução terá de passar pela prevalência de um deles em relação ao outro.
Tendencialmente o direito de personalidade prevalece sobre o direito de propriedade. Todavia, será necessário ponderar o caso concreto por forma a evitar que dessa prevalência resulte uma grande desproporção do direito de propriedade, em desrespeito pelo princípio da adequação, da proporcionalidade e da razoabilidade.
No caso, a vizinha afetada reside na sua habitação há mais de 23 anos, estando atualmente aposentada e sendo constantemente incomodada com os latidos e o ganir do cão do vizinho de cima, que permanece longas horas no terraço, sem qualquer presença humana, ladrando e produzindo ruídos reiterados, que são ouvidos inclusivamente em prédios contíguos, os quais põe em causa o seu descanso, tranquilidade, sono e sossego.
Tendo em conta que esse incómodo provocado pelo cão é intenso, obrigando a que muitas vezes a vizinha tenha de sair da sua habitação em busca de tranquilidade e descanso, nesse conflito entre o direito de personalidade, que se traduz no direito ao descanso, à tranquilidade e ao sono, e o direito à propriedade privada, o primeiro deve prevalecer sobre o segundo.
Desde logo, porque a Constituição estabelece que a República Portuguesa é baseada na dignidade da pessoa humana, afirmando que a integridade moral e física das pessoas é inviolável. Por sua vez, a lei contempla a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. Pelo que, assentando a nossa ordem jurídica na dignidade humana, torna-se inquestionável que, em caso de colisão entre direitos fundamentais, a busca do instrumento que melhor promova o valor supremo da dignidade da pessoa humana não pode deixar de constituir um instituto norteador da solução do caso concreto.
ESSA SUPERIORIDADE DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE SOBRE OS DIREITOS DE PROPRIEDADE JUSTIFICA QUE, ATENTOS OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE, SE IMPONHA AOS DONOS DO CÃO O SACRIFÍCIO DO SEU DIREITO.